Tecnologia para salvar a cultura de um povo
Uma das grandes atrações da BrazilJS 2019, Keoni Mahelona teve problemas que o impediram de estar no palco – mas não quis deixar de participar da maior conferência JavaScript do mundo. Ele gravou um vídeo especialmente para a comunidade e a gente preparou um artigo com o discurso do havaiano.
O Keoni faz parte de um projeto que tem como objetivo a preservação de uma língua indígena da Nova Zelândia e para isso eles apostam na presença digital. O problema era deixar seus dados (a cultura de um povo) nas mãos de serviços ocidentais. A seguir você confere uma compilação do discurso dele, extraído do vídeo, para entender como eles resolveram isso.
“Olá, pessoal! Obrigado por deixarem eu me apresentar desta maneira diferente, embora eu preferisse estar ao vivo no palco.
Sou da Te Hiku Media, uma organização pequena e sem fins lucrativos. Aqui estão nosso site e Twitter para quem quiser conferir.
Preciso começar com a nossa missão, nossa visão. Por que existimos e como operamos.
A razão pela qual existimos é ajudar a revitalizar, preservar e promover a Te Reo Maori, que é um idioma indígena da Nova Zelândia. Foi a primeira língua deste país antes de os britânicos tomarem conta, nos séculos 18 e 19. Se você olhar o país no mapa, a ilha ao norte da Nova Zelândia parece uma arraia – estamos na cauda desta “arraia”. Quando falamos da preservação dessa língua representamos 5 diferentes tribos da região. Nossa missão é captar suas histórias e sua cultura. Começamos com o rádio, em 1991.
Aqui na Nova Zelândia temos um acordo com a coroa britânica que garante o mesmo enquadramento jurídico a tribos indígenas e aos britânicos. É bom porque temos amparo legal para retificar injustiças históricas contra pessoas indígenas deste país, o que nos permitiu ter essa estação de rádio e um canal de televisão com abrangência nacional.
O foco é poder transmitir as coisas na nossa linguagem e conseguir um espaço para a Maori, para que nosso idioma seja ouvido pelas pessoas da Nova Zelândia. Claro que é 2019 e a mídia e as transmissões são bem diferentes do que eram nos anos 90. Uma das nossas estratégias é ter essa presença digital.
O que vocês podem ver no vídeo é a nossa plataforma digital para o usuário. Para nós, é um site que serve para administrar e distribuir conteúdo. Também é um repositório. Então, quando colocamos alguma coisa na nossa plataforma digital, colocamos na melhor qualidade de um arquivo. A plataforma já codifica o arquivo nos formatos a serem distribuídos on-line, para dispositivos menores e para pessoas com conexão lenta de internet. É o único “local digital” para onde vai todo nosso conteúdo – ele faz o que precisa ser feito e automaticamente distribui tudo.
Lançamos essa plataforma em 2014 e levou um pouco de tempo para chegarmos onde gostaríamos porque trabalhávamos com o WordPress – o problema disso é que ele é para blog, era meio estático, e precisávamos de algo orientado por conteúdo.
O outro desafio era descobrir onde armazenar vídeos e gravações de áudio, então o que fazíamos (e o que outras estações de rádio faziam e ainda fazem) era subir o conteúdo em sites como YouTube, Facebook ou Soundloud – o que é ótimo porque é de graça. A desvantagem disso é que você meio que “propaga” alguns de seus dados colocando nessas plataformas, você lança mão da “propriedade ocidental” para poder incorporar tudo. Então eles podem usar os seus dados para lucrar com algo, ou qualquer outra coisa, e isso não se alinhava com os nossos valores culturais. Foi o ponto-chave para decidirmos construir a nossa própria plataforma. Desde então ela nos ajudou muito aumentar a audiência on-line.
No site você pode ver uma coleção do Te Tai Tokerau Festival. É um festival que acontece todo ano na nossa região, com danças tradicionais, e essa competição é normalmente entre 30 escolas diferentes. Nosso trabalho é transmitir ao vivo essas apresentações para que todos aqueles que não podem estar presentes consigam acompanhar. Então, basicamente, dá oportunidade para que o nosso povo e nossa região sejam vistos on-line pelo mundo inteiro.
A outra coisa que fazemos é editar essas performances e deixar disponíveis na plataforma. Então temos esse fluxo de trabalho em que estamos gravando e transmitindo ao vivo, e temos de cortar cada apresentação e já deixar disponível. A plataforma foi criada justamente para fazer isso muito rápido, pois quanto mais rápido você deixa o vídeo que estava ao vivo já disponível para assistir, melhor. Todo mundo quer assistir o Netflix sem ter que esperar uma hora ou uma semana, então isso é muito importante de termos na plataforma.
Nossa primeira transmissão ao vivo foi em 2014, e isso foi antes do Facebook fazer lives, antes do Twitter comprar o Periscope. Parecia muito natural para a gente porque para a comunidade do rádio a transmissão ao vivo sempre foi algo normal. Fazemos transmissões ao vivo no rádio há anos e em vídeo era, obviamente, a próxima coisa a se fazer. Era só colocar a câmera junto com o microfone e estava tudo pronto.
Essa nossa primeira transmissão foi de uma canoa tradicional do Havaí, que navegou pela segunda vez até a Nova Zelândia. Foi super importante para a história da ilha. A canoa navegou sem GPS, sem nada.
Fizemos outras transmissões muito interessantes, como uma corrida de remo. Foi bem afastada da costa e, como não temos fins lucrativos, nosso equipamento era bem mais simples do que precisaria. Decidimos então usar nossos iPhones para filmar e um Raspberry Pi, que é um computador de baixo custo e que tem o tamanho de um cartão de crédito (para usá-lo, basta plugar um teclado e um mouse padrão e conectar tudo isso a um monitor ou a uma televisão). Foi um pequeno truque que conseguimos fazer para a transmissão ficar legal.
Desde então passamos a fazer muitas transmissões ao vivo. É muito trabalho, alguns dos eventos têm dois dias de duração, o que significa que você está envolvido por mais ou menos quatro dias, montando tudo, e são dias super longos. Mas é muito importante para a comunidade, pois nos dá um lugar no mundo digital. Também dá a oportunidade a famílias de estarem “presentes” de alguma forma nesses eventos – mesmo aquelas que estão na Austrália, por exemplo, e querem se reconectar com seu povo e sua cultura. Isso nos permite, como organização, voltar à comunidade e fazer parte dela. Fazemos muitos desses eventos voluntariamente, então é mesmo um esforço da e para a comunidade. Nos ajuda a reforçar a confiança entre todos.
Estamos ativos desde 1991 e estávamos gravando nativos da ilha, falando casualmente sobre os remédios Maori, sobre o meio ambiente, todo o tipo de assunto. E até hoje, desde 2014, quando lançamos a plataforma, todos os dias temos pessoas no rádio falando a língua, entrevistando as pessoas da comunidade. E no momento que isso é feito, subimos na plataforma para serem distribuídos. Então, temos esse arquivo enorme de idioma, dados e conhecimento indígena. É muito valioso. Agora o nosso desafio é fazer esses dados mais acessíveis para o nosso povo. Como fazer o conteúdo dessas gravações dos anos 90 e até das que fazemos hoje mais acessível?
Tivemos uma ideia. Na apresentação eu mostro um vídeo transcrito com um dos membros do nosso projeto, que fala a língua nativa. Em vermelho aparecem coloquialismos ou palavras exclusivas da região. Quando você é fluente muitas vezes quer melhorar na língua, e então dizemos que você pode voltar às origens e conversar com as pessoas, aprender essas palavras únicas.
Então, essa coleção que fizemos de palavras é uma oportunidade para facilitar àqueles que estão querendo melhorar o idioma e aprender mais com os nativos. Enquanto você assiste, pode ver onde essas palavras e idiomas aparecem em todo o vídeo. Então, o que você pode ver são os frames onde uma palavra específica aparece. Você também pode compartilhar o uso de uma palavra específica. É só clicar que ele gera um vídeo para aquele tempo específico na entrevista.
Essa foi a ideia que tivemos para fazermos os nossos arquivos mais acessíveis. Claro que a parte difícil não foi a de JavaScript. O desafio foi fazer as transcrições, porque é muito difícil. A língua que eles falam é muito exclusiva dessa região, então precisávamos das pessoas certas e que entendiam o idioma.
Então, o que fizemos? Pensamos que obviamente a próxima coisa a se fazer era ensinar a língua indígena Te Reo Maori para computadores. A parte mais importante deste projeto não foi a tecnologia ou identificar os discursos. O mais importante foi como e por que nós queremos fazer o reconhecimento deste idioma. Porque, em termos de processamento de linguagem, é tudo sobre os dados, precisamos deles para o trabalho.
Como vimos por aí, Amazon e Apple podem ouvir conversas aleatórias que estamos tendo, e a privacidade é tão importante para a sociedade. Para nós, como povo indígena, os colonizadores já tiraram tanto da gente, toda a nossa terra praticamente, e não vamos deixar eles terem nossos dados.
Sabíamos desde o início que os dados seriam a parte mais importante. Nós queremos que o Te Reo Maori tenha um lugar no mundo digital, e para isso é preciso ter o trabalho de reconhecimento do idioma. Então é muito sobre a parte do esforço na revitalização, na promoção e proliferação da língua. Importante lembrar que esse trabalho vem do fato de nos relacionarmos com a história, que nos lembra das injustiças feitas no passado do governo com os indígenas em termos de leis e proibições de falar a própria língua nas escolas. Nós também temos estabelecido autonomia com esses dados e essa ferramenta, que podemos usar do nosso jeito.
Queremos trazer esse povo para a tecnologia e não havia melhor maneira de fazer isso. Para o povo indígena, se você toma conta da terra, ela toma conta de você. Claramente isso não é o que o capitalismo faz. Olhem só a estrutura das nossas florestas e meio ambiente.
Por isso, acreditamos que não possuímos os dados: a gente toma conta deles para que faça o trabalho que ajude o nosso povo. Para resumir, tivemos que criar esses dados. Construímos uma plataforma para administrar a coleção toda. É bem parecida com o common voice do Mozilla. O desafio era pegar os dados, e não éramos a Amazon. Então não podíamos construir dispositivos baratos e cobrar pouco para conseguir isso. Mas podíamos pagar as pessoas do nosso povo para falarem a língua. Começamos de baixo para cima: formamos grupos e pedimos para que lessem. Os que conseguissem ler o maior número de frases ganhava mais dinheiro. Conseguimos pegar mais de 300 horas em 10 dias, o que é ótimo. Alguns acadêmicos que trabalham nesta área de revitalização linguística conseguem 50 horas em mais ou menos 8 anos de trabalho.
Tendo os dados, precisávamos treinar as máquinas para falarem o idioma e pensamos se outra grande empresa poderia vender esse serviço. Mas, fazendo isso, estaríamos permitindo que uma organização que não seja da comunidade venda dados da própria comunidade, e não estava certo. Seria mais uma colonização, e queremos garantir que isso não vai se repetir. Se você quer que a Siri fale Te Reo Maori, a Apple vai precisar de alguns dos nossos dados e conhecimentos culturais para fazer isso. E estamos felizes em fazer isso, mas só se for nos nossos termos. Senão, não vai acontecer. É por isso que a autonomia é tão importante. Não precisamos que uma grande empresa venha e salve o nosso dia. Nós podemos fazer por nós.
Tudo isso tem sido muito importante para nós. Estamos trabalhando em outro projeto com a perspectiva indígena, mas ainda temos muito trabalho pela frente. É muito importante porque não vivemos em uma utopia. Existe uma coisa chamada privilégio, já que um grupo de pessoas (especialmente homens brancos) tem mais acesso às ferramentas de código aberto. Enquanto isso a minoria, os indígenas, ainda estão preocupados em como alimentar os filhos – e não se eles podem criar códigos. E por causa desse gap, dessa diferença nos privilégios, precisamos repensar em como abriremos os códigos da tecnologia que criamos, com nossos dados.
Enfim, estamos sempre trabalhando em novas ferramentas.
Obrigado pelo seu tempo.”
O Keoni nos traz mais um exemplo de como a tecnologia funciona como ferramenta barata e acessível para mudanças (ou, neste caso, preservação) da cultura e da sociedade. Histórias assim nos ensinam sobre desenvolvimento, soluções e técnicas, mas também sobre a importância de colocar o conhecimento a serviço do que realmente importa.